terça-feira, 11 de novembro de 2008

Que as pessoas brincassem e vissem a face delas brincando...

Domingo, 31/10/76

Transcrição da fita apresentada em aula no dia.

Chico: Eutinha pensado em programar essas coisas. Quer dizer, de organizar o curso de uma forma que ela resolvesse uma série de coisas que eu pensava sobre teatro. Então, eu aceitei fazer esse curso assim sem muito tempo de planejá-lo, mesmo porque eu não acredito que a gente faça um planejamento anterior nessas coisas e tente realizar de acordo com o planejamento.

Ao planejar o curso pensei aproveitar uma certa um certo número de idéias que eu tinha sobre teatro e tenho, pelo fato de conviver com essa coisa e de tentar fazer e de não conseguir me afastar muito disso. Eu estou envolvido com o processo de teatro. Então, a idéia do curso é uma Oficina Básica de Teatro e Dança. Se fosse um curso seria de Licenciatura em Desenho e Arte Plástica ou de educação Artística. Quer dizer então, o curso tem um compromisso com a cultura brasileira, já que tem um compromisso com a educação esse outro compromisso também fica mais reforçado.

A idéia que eu tinha, que eu tenho, que me animou pra fazer esse curso era que: acho que o Teatro Brasileiro não tem qualquer coisa que pudesse se chamar de vocabulário gestual. Quer dizer, o jogo das marcações, o jogo da dança no teatro, o jogo da verticalização, toda verticalização, toda aquela parte do teatro que é após o texto, ela é muito apreendida em práticas internacionais, métodos e técnicas de teatro que de uma forma ou de outra chegaram aqui e que são importadas: Qualquer coisa do teatro francês, do teatro alemão, do teatro inglês, do teatro americano. É qualquer coisa de Stanilawiski, de Grotowiski, de Brecht e arremedos dessas coisas. Então é uma preocupação com o fantasiar a voz, por exemplo. A voz, então, tem aquelas coisas de califasia, de caliritmia, de entonação, de impostação. Quer dizer, a alteração do jeito de falar começa por aí. Também as posturas, aquele negócio de ter noção do meio do palca, da direita baixa, centro, essas coisas... Uma certa gravitação no palco que não é extraída da vida brasileira, mas aproveitamento de desenhos surgidos em outras culturas. Quer dizer, desenhos de marcações de outras culturas, que atendem a outros interesses, que atendem a outras técnicas, que atende a outros fazeres artísticos.

O teatro brasileiro me pareceu sempre, nesse processo de verticalização, um aimitação dos processos de fazer teatro em outros locais. Isso, sem dúvida, serviu muito aqui no sentido de ter possibilitado a existência de espetáculos de teatro, a criação de atores, a formação de público. Mas , ao mesmo tempo que isso foi criado, foi criado distante das raízes nacionais, das raízes brasileiras.

Acho que o povo brasileiro não se vê no teatro brasileiro. Isso é uma idéia geral assim que eu tenho. E que, aqui, não tô conseguindo dizer claramente porque essas coisas não estão claras na minha cabeça. É só um mal estar que eu tenho quanto a essa parte. Outra coisa é também os textos. Essa dramaturgia, por conseqüência , todos esses textos existentes são feitos em gabinetes isoladamente. Indivíduos que criaram peças, tramas, desligadas da realidade brasileira, desligadas dos problemas brasileiros, da cultura brasileira, desliagadas do cancioneiro brasileiro, desligadas do romanceiro nacional. São tramas e peças, enredos, argumentos que são importados também. São uma caixa de efeito.

O que a gente pode dizer é que o teatro brasileiro é uma caixa de efeitos, uma caixa de segredos, uma carpintaria de prender a atenção. Isso também está nos cenários. Tá na própria forma do teatro. Nós temos palcos italianos, essa coisa toda. Acho que outros setores da arte, outros modos de fazer artísticos estão um pouco mais nacionais, um pouco mais brasileiros. São um pouco mais espelhos da nossa realidade. São objetos realmente da decifração da nossa realidade, da transformação da nossa realidade. São momentos em que há um convite pra alma brasileira se reconhecer diante da arte brasileira. Acho que o teatro é uma coisa distante desse aspecto aí.

São essas as inquietações que eu tenho e que (explicam porque) aceitei fazer o curso... Pensei que podia se aproximar o teatro brasileiro por exemplo do futebol. Quer dizer, a dança do futebol, daquele jogo de participação que há, daquela cooperatividade, associatividade que há no jogo de futebol, ao mesmo tempo que há uma certa disputa, jogos de malícia. Uma coisa decidida na hora. Um um certo improviso de ações. Um certo comungar sem combinar. Quer dizer, uma coisa decidida com olhos. Isso o nosso teatro não tem. Isso o futebol tem e é uma prática brasileira, é um modo brasileiro e há uma malícia, uma malandragem. Então, essa aproximação, eu acho que ela é importante para, para o teatro brasileiro. E está longe essa coisa de qualquer autor brasileiro ter comentado isso alguma vez, de algum teórico brasileiro ter dito isso , ter falado nisso, o que para mim é estranho.

E aí a gente pode ver também que o carnaval tem muita coisa a dar para nosso teatro. Tem outros momentos aí em que há realmente rituais, há cerimônias e há teatro. Esse teatro espontâneo não está no teatro brasileiro. Nem também esse mais elaborado: o folclore. Quer dizer, as festas populares. Essas multifacetas aí da cultura brasileira. O teatro tem uma visão opaca pra essas coisas. Então, eu pensei que as pessoas poderim brincar, um grupo de pessoas poderia brincar um certo, brincar um futebol, jogar um jogo de futebol. Elas fariam uma tremenda expressão corporal. Elas desenvolveriam um forte sentido de cooperativismo, de associatividade e naquele ambiente de futebol fariam surgir emoções reais em funções de coisas concretas em que não há interesses particulares, há um interesse geral.

As pessoas durante um jogo revelam, revelam muitos sentimentos, revelam muitas emoções. Simplesmente essas emoções aparecem pelo jogo e não há nenhum compromisso, nenhum interesse. Então, desligadas de compromissos, de interesses, as pessoas fazem brotar esses sentimentos, é uma criação coletiva realmente. Então, as pessoas interessadas em aproveitar isso, jogariam um futebol várias vezes e veriam que tipo de emoção, que tipo de associatividade, como é que elas se mostram ao jogar e recolhem essas emoções e poderiam com elas trabalhar, teatralizá-las, dramatizá-las, torná-las evidentes, fazer uma outra combinação com elas e tudo mais.

Tentar então, levar essas emoções e impostar-lhe um texto. Quer dizer, verticalizar um texto a partir dessas emoções brotadas num jogo, por exemplo, era a experiência que me alimentava aí, quando eu pensei em organizar essa Oficina de Teatro e Dança aqui na UNB. Mas isso não foi possível porque a época do ano é muito seca, um calor danado e então, a aula de quatro as seis não dava pra fazer. É um projeto demasiado arrojado pra um individuo levar à frente. Então, suprimi isso e fiz alguma coisa bem menor, mas dentro dessa direção: que as pessoas brincassem e extraíssem dessa brincadeira alguma... vissem a face delas brincando. A face delas num jogo. E recolhessem isso. Então, foi com essa idéia que fizemos um texto e montamos. Depois nós montamos um texto que tem, que guarda proximidade com o que foi feito ali, no espontâneo, no autêntico. E isso foi muito difícil de fazer porque ninguém tá acostumado a trabalhar desse modo. Mas é só uma dificuldade que quando a gente supera, resolve... E então?... Opa!...

Naturalmente, eu dei uma ancorada aqui no teatro brasileiro e deixei ver que há algumas exceções. Quer dizer, tem algumas peças vigorosas e tem algumas pessoas que tentam essa recuperação dos valores nacionais, da identificação do teatro com a arte brasileira. Mas são exceções. São coisas muito pequenas, não dá pra ver. Então completamente afogadas. Então quem ancora não dá pra ver isso.

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