quinta-feira, 20 de novembro de 2008

As dificuldades do fazer existem. Mas existem também as facilidades.Vamos nos guiar pelas facilidades...

Segunda-feira, 01/11/1976

Carlos - Vamos aproveitar que o Chico ainda não veio e conversar pra saber como todo mundo aqui ta vendo os 3 médicos. Vamos conversar, discutir sem a presença do Chico Pontes...

Clara - Duvido que a gente consiga isso.

Carlos - Duvida o que?

Clara - Discutir sem a presença do Chico.

Carlos - Eu consigo e muito, não tenho culpa se você não consegue.

Clara - Você ta muito apressando em dizer as coisas. E me responde pensando que entendeu o que eu disse.

Carlos - O que você quis dizer?

Clara - Que a gente não consegue discutir sem a presença do Chico. Prova disso é que você convidou todo mundo a conversar sem a presença dele. Ele não tava presente, mas você colocou ele num canto. Então ele tava presente.

Carlos - Vamos conversar?

Clara - Vou anotar essa nossa conversa.

Carlos - Esse negócio de anotar conversa parece coisa da Polícia Federal.

Gustavo - Coisa dos homens.

Clara - Por falar nisso Carlos, é bom você ter cuidado. Tenho um depoimento meu todinho anotado aqui no meu caderno.

Carlos - Eu acho que os atores, acho que nós, principalmente o Augusto, não tamos conseguindo fazer um personagem. Tamos sendo muito nós mesmos.

Clara - Acho que se a gente se preocupar muito em fazer um personagem, se preocupar muito em ser diferente de nós mesmos vamos nos atrapalhar. Não vejo mal do personagem se parecer com a gente mesmo. Acho que a gente pode misturar as coisas. Não se preocupar em se desligar completamente do que nós somos e ser só o personagem. Primeiro porque é muito difícil. Acho que pelos menos no início isto é muito difícil.

Carlos - Acho que isso que você falou é um erro primário em teatro: escolher um ator porque ele se parece com o personagem.

Gustavo - Quando eu tô fazendo o Lino eu lembro daquele teatro de Pirenópolis que o Chico falou. Então eu tô fazendo como num teatro de Pirenópolis.

Clara - Eu acho que o Gustavo se parece com Pirenópolis.

Antônio - O Lino é um personagem muito importante na peça. Ele é o apresentador dos personagens. Deve aparecer em cena como se esperasse convidados.

Márcia - Eu tô querendo saber mais sobre os tipos dos 3 médicos. Tô notando que o Arão quer fazer o Cautério um tipo assim sério, cheio de maneiras. Mas ele começa fazer assim depois se esquece de continuar.

Antônio - É que o Cautério representa ele mesmo um tipo. Como nem toda hora ele consegue ser serião, ele às vezes derrapa. Na verdade ele não é o que quer parecer ser, por isso às vezes ele não consegue continuar fazendo um gênero o tempo todo.

Carlos - O João me disse que tava com dificuldades de fazer a cena com o Gustavo porque o Gustavo não ajuda. Não olha pra ele, não presta atenção no que ele fala.

Clara - Acho que isso não pode estar prejudicando o João porque nesta cena provavelmente o Antônio estará lendo o texto e não vai desgrudar o olho do papel. O João tem que aprender a se virar sozinho. O Gustavo vai estar lá e não vai ao mesmo tempo porque ficará lendo.

Antônio - Agora não tô entendendo a da Ana. Aqui com a gente ela é toda extrovertida, abraça, beija todo mundo e lá na hora de fazer a cena com o Carlos fica toda encabulada.

Márcia - A Ana não tá conseguindo levar a extroversão dela pro palco. Ana, você é extrovertida com seus namorados?

Ana - Eu não tô vendo esse problema aí que vocês tão vendo. Acho que não tô conseguindo fazer direito a Rosinha porque eu não sei as falas dela de cor e nem como ela deve se comportar. Não sei se devo fazer ela alegre, expansiva ou quietinha.

Antônio - Acho que vocês devem fazer essa cena do Miléssimo e Rosinha em câmara lenta. Muitas vezes. Pra ficar os gestos e poder repetir.

Carlos - Quem deve cuidar dos gestos é também o Gustavo. Toda vez que ele fala vai ficando... Vai ficando... Na ponta dos pés. Acho que ele tem que acabar com isso.

Daniel - Acho não. Isso é legal.
(Daniel vai embora).

Márcia - Acho que o Luis tá fazendo, tá falando muito preocupado com as pessoas que estão assistindo.

Felipe - É que eu fico um pouco nervoso, preocupado.

André - Tem que se esquecer que as pessoas que tão assistindo existem.

Clara - Não acho isso não.

Carlos - Tem que se desligar das pessoas em volta como o Grotowiski fala.
(O Chico chega)

Márcia - Felipe acho que muita coisa se resolveria se você fosse capaz de dizer uns três palavrões pra nós aqui quando tivesse raiva.

Chico - Parece engraçado mas a Márcia tem razão. Temos que ter um modo de encarar a vida e despejar isso no texto. Se a gente não tem coragem de na vida dizer um palavrão, não temos também de dizer quando fazemos teatro. Por isso quando o Miguel (Felipe) xinga o Lino, não convence.

Felipe - (diz um palavrão)

Chico - Assim baixinho não vale. Tem que ser igual o Arão que me xingou de facista e sacana bem alto e tudo ficou por isso mesmo.

André - Em vez de palavrões as pessoas podiam se xingar na peça usando nomes de doenças.

Felipe - Acho que com o tempo eu vou superar isso.

Chico - Assim falando desse jeito não vai conseguir não. Tá parecendo linguagem de memorando com data-vênia e tudo. Tenho umas coisas aqui anotadas, umas preocupações minhas que vou ler pra vocês:
  • Devemos ter cuidado com a pronúncia das palavras. A pronúncia ta muito falsa. As pessoas que assistem não está entendendo o que se está dizendo.
  • Não podemos atropelar as falas uns dos outros. Precisam deixar as falar repousarem, agirem. Quando fizermos a recuperação de uma fala, essa recuperação deve ser feita com um propósito.
  • Deve haver uma pessoa lendo o texto todo o tempo.
  • Assimilar o gesto um dos outros. Ficar numa do personagem em cena deixar uns vazios, uns abismos, sensação grega, vai lá grego-romana. Ter noção do território do palco. Da gravitação.
  • Preocupação: A quem vai dizer as falas? A outro ator? Às pessoas da platéia?
  • A intenção de cada frase. Onde começa a intenção e onde ela termina. Há uma intenção geral: Ela é clara, só não é claro o que você diz e há várias sub-intenções.
  • Misturar a vida com o teatro pra poder depois fazer as distinções. Misturar um pouco a nossa vida com o que vamos fazer e depois separar. O teatro tem uma função: a da gente rever as coisas , aliás é pra isso que o teatro foi feito. Por isso algumas intimidades não nos deve intimidar, tô referindo aqui à cena da Rosinha e Miléssimo.
  • Acho que a gente ta fazendo coisas só na base da simpatia. Sejamos francos quem aqui faria o General Franco? Ou Silvério dos Reis? Quem teria coragem de arranjar gestos pra fazer um pústula? E fazer bem, sem ser caricato, sem gozação? É preciso consciência pra poder separar as coisas, fazer bem o Silvério dos Reis: Se você tiverrejeições a umas práticas e se você não tiver consciência dessas rejeições não vai fazer determinados personagens, não dançará capoeira, não fará muitas outras coisas.
  • Como observador notei que o nosso processo está sendo visitado por essas dificuldades. Estamos confundindo teatro com a vida .Estamos encabulados de ser os personagens que devemos ser. Queremos fazer um personagem simpático, que podemos entrar com ele em casa
  • No momento somos umas pessoas um pouco artistas transfiguradoras. Vamos assumir esta posição.
  • Os artistas vivem e representam a vida. (Há uma separação). Está um pouco confuso em nós: O que é teatro e o que não é teatro. O que somos e o que não somos.
  • Na cena da Rosinha e do Miléssimo precisamos descobrir qual é a da cena pra poder sustentar o equívoco. Quando a Rosinha arrasta Miléssimo (imprensa e mostra uma situação que é eterna). Uma situação que tá contada nas músicas populares. Ouvir Chico Buarque, Caetano Veloso. Tá contada nos romances. Nas gravuras. Ta tudo aí. A gente inventa, inventa e vai ver tudo já ta contado. Precisamos fazer o ápice desta questão.
  • As dificuldades do fazer existem. Mas existem também as facilidades, Vamos nos guiar pelas facilidades.

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